A biomecânica do joelho
A Síndrome da Dor Patelofemoral (SDPF) é a forma mais comum de dor no joelho tratada em clínicas de fisioterapia. Essa série foi feita para ajudar as pessoas a entenderem a condição, o porquê dela ocorrer, e como tratá-la. Já publicamos a parte 1, que abordou a prevalência, apresentação e anatomia associada com a Síndrome da Dor Patelofemoral.
Caso você não tenha lido essa parte, recomendamos que dê uma olhada no post anterior nesse link
Na parte dois focaremos nabiomecânica do joelho e na sua relação com a Síndrome.
Mas antes de abordarmos assuntos mais específicos, existem dois fatores biomecânicos que precisamos entender ocorrendo na SDPF:
- Estresse patelofemoral;
- E o rastreamento patelar.
Estresse patelofemoral
Quando nós realizamos movimentos como o agachamento, a corrida ou a subida de escadas, a articulação patelofemoral absorve uma grande quantidade de carga e estresse.
Esse conceito deve estar bem firme em nossa mente.
Não importa o quão perfeita seja a técnica de execução do movimento, ou o quão forte seja a articulação; ela irá sofrer durante esses movimento.
Outro conceito importante é que a articulação foi feita para lidar com estresse, e possui uma cartilagem bem durável para receber as forças que a impactam durante as nossas atividades.
No entanto, às vezes, na presença de uma sobrecarga aumentada, o joelho pode se tornar doloroso. Esse é um conceito central na SDPF. Ainda, durante a recuperação da SDPF, devemos garantir que não sobrecarreguemos ainda mais a articulação, aplicando a dose correta de sobrecarga para que a reabilitação aconteça.
Logo, faz sentido que nós devamos ter certo nível de consciência a respeito de quais atividades e movimentos criam uma sobrecarga maior ou menor sobre a articulação patelofemoral.
O bom é que essa sobrecarga pode ser medida, logo conseguimos saber exatamente quanto de estresse está sendo gerado na articulação durante cada tipo de movimento.
Antes que entremos nessa discussão de forma mais aprofundada, vamos discutir um pouco sobre área de superfície e estresse.
Um conceito chave nesse momento é que uma área de superfície mais tem capacidade de dissipar forças mais facilmente do que uma superfície menor.
Em outras palavras, a mesma força aplicada em uma superfície grande, corresponde a menos força por centímetro quadrado do que a mesma força aplicada em uma superfície com área menor.
Logo, criamos uma regrinha básica:
- Superfície menor – mais difícil de dissipar uma força
- Superfície maior – mais fácil de dissipar uma força
Com base nessa regra, uma superfície com área maior seria melhor para dissipar as forças aplicadas no joelho, correto?
No entanto, a superfície disponível entre o fêmur e a patela para dissipar as forças aplicadas na articulação durante o movimento é limitada, e varia de acordo com a amplitude de flexão do joelho.
Quando o joelho está totalmente estendido, não existe contato efetivo entre a patela e a fêmur.
Quando a flexão do joelho se inicia, os primeiros 20 graus de flexão correspondem ao contato da patela com o fêmur, e inicialmente existe muito pouco contato entre esses dois ossos.
A partir dos 20 graus de flexão,no entanto, cada mais vez mais contato é feito entre a patela e o fêmur,aumento a área de superfície. Essa superfície continua aumentando até cerca de 90 a 120 graus de flexão do joelho.
A partir desse ponto, a superfície de contato entre a patela e o fêmur volta a reduzir, até que a extensão completa seja alcançada.
Então, recapitulando, se uma superfície de contato articular maior significa maior área para dissipar forças e menor risco de lesão, o agachamento até 90 graus de flexão de joelho seria o máximo que faríamos e essa amplitude de movimento seria a que oferece menor estresse na articulação patelofemoral, correto?
O problema é que as coisas não são tão simples…
É ai que entra um segundo conceito muito importante para a SDPF, que reúne as forças de reação articulares e a contração do quadríceps.
Basicamente, quanto mais o joelhos e flete, e quanto mais forte o quadríceps se contrai, maiores são as forças aplicadas na articulação patelofemoral.
Em outras palavras, na medida em que descemos no agachamento, maiores são as forças aplicadas na articulação patelofemoral.
Logo, independentemente da área de superfície de contato articular aumentar em cerca de 90 graus de flexão do joelho, as forças exercidas sobre a articulação patelofemoral aumentam de forma significativa, e não são compensadas de forma suficiente pela superfície de contato.
Logo, atividades que exigem um maior nível de flexão de joelho são aquelas que exercem maior sobrecarga sobre o joelho.
A saber:
- A deambulação exerce uma força de 1.3 vezes o peso corporal na articulação patelofemoral;
- Subir e descer escadas exerce uma força de 3.3 vezes o peso corporal na articulação patelofemoral;
- Correr exerce uma força de 5.6 vezes o peso corporal na articulação patelofemoral;
- O agachamento profundo exerce uma força de 7.8 vezes o peso corporal na articulação patelofemoral.
Acredita-se que a SDPF ocorra principalmente por excesso de uso da articulação patelofemoral.
O que explicamos até agora ajuda a compreender porque atividades como correr e os agachamentos podem aumentar a propensão ao desenvolvimento dessa Síndrome, bem como a entender como algumas atividades costumam gerar mais dor e mais sintomas nos indivíduos portadores, como subir e descer escadas.
Esse contexto é extremamente importante nos agachamentos profundos, com amplitudes maiores do que 120 graus de flexão de joelho, quando temos uma menor superfície de contato entre patela e fêmur, e uma maior contração do quadríceps, aumentando a força exercida na articulação, e reduzindo sua capacidade de dissipar essa força.
Para atletas que trabalham com o agachamento ou levantamento de peso isso é ainda mais significativo pelo uso de carga durante o agachamento, aumentando ainda mais a sobrecarga na articulação patelofemoral.
Dá para entender porque eles irão sentir dor no joelho de tempos em tempos.
Outro fator que pode aumentar o estresse na articulação patelofemoral é o encurtamento do quadríceps, o que gera um problema de compressão patelofemoral.
O tendão do quadríceps se insere na patela, que por sua vez se insere diretamente na tíbia. Esse arranjo forma uma cinta, e na medida em que o joelho se flete, essa cinta aperta e comprime a patela na fossa troclear, causando compressão da articulação patelofemoral.
Essa é a provável razão pela qual pacientes com SDPF apresentam dor e sintomas após períodos prolongados na posição sentada, devido justamente à uma compressão prolongada da articulação patelofemoral.
Pacientes com SDPF apresentam ainda, encurtamentos de quadríceps e flexores de quadril, identificados a través do Teste de Thomas, bem como encurtamento da banda iliotibial, detectado no Teste de Ober.
Logo, restaurar a flexibilidade normal dessas musculaturas, que é verificada através de testes de Thomas e de Ober normais, é um preditor de melhora e recuperação da SDPF.
Rastreamento patelar
Na primeira parte dessa série,discutimos um pouco sobre a fossa troclear do fêmur, e sobre como a patela se encaixa perfeitamente nessa fossa.
Na medida em que o joelho flete, a patela desliza ao longo da fossa troclear, e um alinhamento perfeito da patela nessa fossa é fundamental para a saúde da articulação, como já foi comentado.
Esse alinhamento permite uma maior superfície de contato articular capaz de dissipar forças durante o movimento, e garante que essas forças sejam dissipadas de forma homogênea por toda a articulação.
Diversos fatores, no entanto, são capazes de alterar esse alinhamento normal da patela, e vamos discutir alguns desses fatores a seguir.
Você se lembra quando comentamos, na parte um dessa série, sobre a atividade dos estabilizadores ativos e passivos da articulação patelofemoral?
Então, um dos estabilizadores passivos do joelho é justamente o encaixe ósseo da patela na fossa troclear. Quanto melhor é esse encaixe, melhor é o deslizamento da patela, e mais fácil é o movimento com menor sobrecarga articular.
É importante que compreendamos que esse encaixe ósseo pode variar muito de pessoa para pessoa.
Além disso, esse problema não é simplesmente corrigido com cirurgias e pessoas com problemas congênitos de alinhamento patelar podem sofrer deslocamento de patela – o que envolve uma discussão para outro momento – e podem apresentar uma predisposição para a SDPF.
Na SDPF existe mais frequentemente, um estresse aumentado na região lateral, ou mais externa da articulação patelofemoral.
Diversos são os motivos por trás desse padrão de sobrecarga, mas uma das causas mais relevantes seria o encurtamento da musculatura lateral da coxa, incluindo estruturas como o ligamento patelofemoral lateral, a banda ileotibial, e o retináculo lateral.
O encurtamento da banda ileotibial puxa a patela diretamente através do retináculo lateral, o que se acredita exercer uma força capaz de deslocar a patela lateralmente, causando um mal alinhamento e problemas no rastreamento patelar, gerando um estresse aumentado na parte lateral da articulação patelofemoral.
Por sorte, a redução desse encurtamento lateral e a restauração da flexibilidade normal desses grupos musculares têm sido mostradas como um preditor de melhora na SDPF.
Apesar disso, devemos saber que não é apenas o encurtamento das estruturas externas da coxa que geram problemas no rastreamento patelas, não.
Além disso, nós temos a fraqueza, frouxidão, ou perda de controle dos estabilizadores mediais, o que também causa um deslocamento lateral da patela, agravando ainda mais o quadro.
Dentre as estruturas enfraquecidas na SDPF encontram-se a cápsula articular, o ligamento menisco-patelar medial, o retináculo medial, o ligamento patelofemoral medial, o quadríceps (principalmente a porção do vasto medial), os músculos que se inserem na pata de ganso, e o bíceps femoral.
Lembrando que o vasto medial oblíquo é um estabilizador medial ativo do joelho, e indivíduos com SDPF tendem a ter uma ativação atrasada dessa musculatura.
A perda de controle desse músculopode ainda alterar o rastreamento patelar na fossa troclear e ainda funcionarcomo preditor de uma maior probabilidade para o desenvolvimento da SDPF.
Recapitulando…
Para relembrar o que vimos até agora, um breve resumo:
- A Síndrome Patelofemoral é uma condição muito comum de uso excessivo da articulação do joelho;
- Um mau alinhamento patelar pode aumentar o estresse na articulação patelofemoral;
- Atividades com uma maior amplitude de flexão de joelho aumentam o estresse na articulação patelofemoral;
- Uma carga aumentada sobre a articulação, bem como a contração do quadríceps, aumenta o estresse na articulação patelofemoral;
- A fraqueza e frouxidão de estruturas mediais, ou da região interior da coxa podem afetar o rastreamento da patela na fossa troclear;
- O encurtamento de estruturas na porção lateral ou externa, ou mesmo da porção anterior da coxa, podem aumentar as forças compressivas na articulação patelofemoral.
Agora já sabemos que a Síndrome da Dor Patelofemoral é uma condição de sobrecarga e excesso de uso da articulação e sabemos ainda o porquê de certas atividades aumentarem a sobrecarga sobre a articulação patelofemoral.
Por fim, entendemos como o alinhamento da patela na fossa troclear pode afetar o estresse imposto sobre a articulação patelofemoral e como certas estruturas ao redor do joelho podem afetar esse alinhamento.
No próximo texto da série vamos discutir como o pé, o tornozelo e o quadril podem afetar as estruturas envolvidas na SDPF.
Esse texto foi escrito com base no artigo publicado no link https://fitnesspainfree.com/knee-pain-complete-guide-patellofemoral-pain-syndrome-part-2-biomechanics-knee/, que possui todas as referências utilizadas para a elaboração do texto, bem como imagens e gráficos sobre os temas aqui tratados.
Ficou com alguma dúvida sobre a biomecânica do joelho na Síndrome da Dor Patelofemoral?
Você está conseguindo acompanhar todos os conceitos até então apresentados?
Quem não vê a hora de ler a parte três comente nos comentários!