Medicina Baseada em Evidências

A Ótica da Família do Paciente

“Só porque podemos, não significa que devemos” – apoiar a tomada de decisão informada.

A história de Marian deve ser lida e entendida para que você possa extrapolar esta ideia e usá-la nos seus casos clínicos onde você for aplicar o conceito da Medicina Baseada em Evidências.

Marian é uma idosa de 84 anos, morando em um abrigo, gozando de boa saúde, apesar da piora da perda de memória e da surdez grave que causam grande frustração e de uma fratura de fêmur que a deixou com um equilíbrio precário há dez anos. Sua única medicação é um anti-hipertensivo.

Sangramentos frequentes de nariz levaram a sua filha a procurar um médico para ela.

Marian foi atendida pela primeira vez na Clínica para Idosos Total Care, onde descobriu ter pressão alta e colesterol alto.

Foi marcada uma consulta de retorno para realizar um exame de sangue em jejum e iniciada terapia com estatinas.

Marian acredita ser uma boa ideia, pois disseram que isso reduzirá o risco de um AVC ou infarto.

A outra filha de Marian é médica e ela prontamente diz: “Estatinas? Não”.
Porém, ela percebe que precisa encontrar evidências que suportem essa opinião, simplesmente pelo fato de ela ser uma pessoa mais informada sobre estes assuntos do que os outros.

Acontece que conhecer o que nos mostram as evidências científicas é apenas um dos três componentes fundamentas da medicina baseada em evidências. Os outros dois são as preferências e valores do paciente, além do julgamento clínico.

A prioridade de Marian era ter a melhor qualidade de vida possível, porém sem nenhum desejo de ter sua vida prolongada. Isso é algo que deve ser levado em consideração para apoiar qualquer decisão relacionada ao diagnóstico e tratamento de doenças.

Mas a filha de Marian tinha muitas dúvidas, além da sensação de que um processo havia sido iniciado e de que ela se sentia impotente para parar. Ela sentia que deveria colocar um fim nisso enquanto decidia o que era melhor para a sua mãe.

Ela foi então ao Twitter e enviou uma mensagem privada para um colega que havia conhecido em conferências, no qual confiava e acreditava ter a experiência clínica necessária.

A história a seguir conta como ela conseguiu resolver os problemas em relação à saúde de sua mãe, bem como apresenta alguns dos princípios que podem ser úteis para outras pessoas ao enfrentar situações semelhantes.

Tomando uma decisão informada: O arcabouço teórico

Para ser capaz de tomar uma decisão informada sobre qualquer tratamento, o paciente precisa ser capaz de:
• Ter acesso a melhor informação relevante ao seu caso;
• Ser capaz de reter a informação na sua mente;
• Entender como o tratamento se aplica, ou não se aplica a cada caso;
• Saber quais são as suas preferências e prioridades;
• Pesar todas as informações;
• Tomar uma decisão baseada em tudo isso.

Isto pode ser resumido em uma versão reduzida da tríade da Medicina Baseada em Evidências de Sackett.

Em termos ideais existe uma boa chance de que as melhores decisões possam ser tomadas se:
1. O paciente ou o seu responsável e o profissional de saúde tiverem acesso à melhor evidência disponível;
2. O paciente confiar e respeitar, mas estiver pronto para desafiar o profissional de saúde;
3. O profissional de saúde for sensível às esperanças, medos, preferências e prioridades do paciente.

Essa aspiração é mais difícil quando um declínio cognitivo não permitir que o paciente seja capaz de se lembrar ou de articular suas preferências.

Pode ser difícil para um profissional de saúde saber quão distante da realidade está o relato das preferências do paciente, feito pelo cuidador e se este relato representa, de fato, as preferências do paciente ou se reflete o que o cuidador acredita que elas sejam, ou o que elas deveriam ser.

Se uma relação já foi estabelecida entre as três partes, isso fica mais fácil.

Richard Bauchner, editor chefe do JAMA, disse que a proporção da preferência do paciente, da experiência clínica e da evidência científica na tríade da Medicina Baseada em Evidências, varia de acordo com a situação clínica.

Em doenças agudas, as evidências tendem a prevalecer, enquanto em condições crônicas e cuidados paliativos, a preferência do paciente tende a ser soberana.

Logo, existem três desafios-chave que temos que enfrentar, a saber:

  1. Encontrar e avaliar a informação sobre os exames e tratamentos propostos para permitir que decisões informadas sejam tomadas;
  2. Comunicação entre os profissionais envolvidos no cuidado de Marian;
  3. Apoiar a tomada de decisão de Marian.

Encontrar e avaliar a informação, permite que decisões informadas sejam tomadas.

Marian deveria realizar um exame em jejum?

Uma pergunta a princípio simples, mas quando analisamos mais a fundo, existem aspectos diferentes, tanto práticos quanto acadêmicos, a serem levados em consideração.

De forma geral, mesmo com a melhor boa vontade do mundo, pode ser difícil garantir que alguém com demência ou déficit de memória faça o jejum adequadamente antes de um exame de sangue. Da mesma forma, como garantir que o oposto não aconteça, com o paciente sem comer e beber por mais tempo do que o necessário?

Administrar isso pode ser difícil quando existe alguém morando com o paciente e chega a ser impossível quando o paciente mora sozinho.

Esse tipo de situação pode gerar angústia entre os cuidadores e a família, que frequentemente sentem culpa. A ansiedade, a culpa, e às vezes a raiva gerada, podem ter efeitos adversos na relação com o paciente.

As instruções para não comer e não beber podem causar problemas, e nesse caso não são nem necessárias. Mesmo que o paciente consiga seguir as instruções, pessoas com problemas de memória dependem fortemente da sua rotina e qualquer mudança pode acarretar um estado de delirium.

Em um aspecto mais acadêmico, estudos têm mostrado que o jejum tem pequeno efeito nos níveis de colesterol, afetando significativamente apenas os triglicérides. Portanto, neste caso, o jejum já não é recomendado antes de um exame de sangue.

Logo, não existe razão real de submeter Marian e sua família, a essa situação.

Tomando uma decisão informada sobre o uso de estatinas

As estatinas são o medicamento mais prescrito no Reino Unido. Diversos estudos sobre o assunto foram publicados nos últimos 10 anos, incluindo revisões sistemáticas, o que traz uma quantidade considerável de evidências e informações para suportar essa decisão.

Infelizmente, no contexto da Marian, a maioria desses estudos e das revisões falham na primeira pergunta científica: “Será que esse estudo se aplica ao meu paciente?”
Em outras palavras, meu paciente alcançaria os critérios de inclusão e exclusão dos estudos?

Até recentemente, a demência ou múltiplas comorbidades, tendiam a ser excluídos dos grandes estudos, de forma a aumentar a sua confiabilidade.

O foco na validação interna resulta frequentemente em uma menor capacidade de generalização dos resultados.

Então, o que fazer no caso de Marian?

Ao consultar Kit, a filha de Marian descobriu que ele havia escrito recentemente um artigo desafiando a prescrição em massa de estatinas para prevenção primária de eventos como o AVC e o infarto.

Marian estava acima do limite de idade dos participantes do estudo PROSPER, mas os dados sugerem que as estatinas não previnem o AVC e podem gerar efeitos colaterais como náuseas, sangramentos nasais, dificuldade para dormir e problemas de memória.

De forma geral, estudos que não conseguem estimar riscos e os impactos do tratamento, como números de NNT e NNH, fazem com que seja difícil aplicar os dados a um paciente especifico. Por fim, pessoas diferentes absorvem mensagens diferentes do mesmo artigo, baseando-se em vieses cognitivos.

A atual recomendação para a avaliação e redução de risco cardiovascular é desde 2008 e baseia-se em oferecer informações para as pessoas acerca do seu risco cardiovascular absoluto, além dos benefícios e riscos de uma intervenção em um período de dez anos.
Essa informação deve ser dada de forma que:

  • Apresente riscos e benefícios individualizados;
  • Apresente riscos absolutos de eventos de forma numérica;
  • Use diagramas e textos apropriados.

O estudo mais relevante sobre o uso de estatinas em pacientes acima dos 80 anos é o estudo PROPECT.

Ele foi um estudo prospectivo randomizado controlado, que recrutou pacientes entre 70 e 80 anos com doenças vasculares conhecidas, ou fatores de risco. No entanto, o estudo exclui os pacientes com déficits cognitivos, logo não é totalmente aplicável na prática. Além disso, o benefício do uso da estatina nesse grupo de pacientes foi observado apenas em pacientes do sexo masculino.

Após analisar as evidências disponíveis, a filha de Marian acreditava que os danos pesariam mais que os benefícios, logo seria necessário compartilhar isso com a paciente e estabelecer a suas prioridades e preferências.

Comunicando-se com os profissionais de saúde responsáveis pelo cuidado de Marian

Três questões-chave devem ser colocadas para os profissionais de saúde:

  1. Qual é o risco de um AVC ou infarto com o tratamento?
  2. Qual é o risco de um AVC ou infarto sem o tratamento?
  3. Baseado em qual evidência?

Algumas opções para abrir essa porta de comunicação poderiam ser:

  • Enviar uma cópia do artigo para o médico antes da consulta;
  • Conversar com Marian e esclarecer todos os pontos necessários;
  • Perguntar para Marian se ela desejaria tomar as medicações;
  • Levar uma cópia do artigo para a consulta;
  • Deixar que o médico fizesse a prescrição de acordo com a sua vontade, e esperar que a sua mãe tomasse a decisão que ela preferisse.

Apoiando Marian em sua tomada de decisão

Para explorar as preferências e prioridades de Marian, foi sugerido que a família fizesse o exercício de escrever quais eram as suas prioridades, quais eram as suas esperanças, seus medos e suas preferências, o que eles enxergavam como o melhor para Marian e quais seriam os melhores e os piores desfechos para o seu caso.

Essa seria uma forma de fazer com que a família, incluindo o paciente, discutisse sobre as diversas visões sobre um mesmo tópico. Se existisse consenso nas respostas, isso ajudaria a defender essas visões junto ao médico, fazendo com que a tomada de decisões fosse bem mais fácil.

Tópicos adicionais que devem sempre ser discutidos são:

  • Qual seria o teto do tratamento de Marian, ou seja, se novos problemas ou complicações surgissem, até onde eles estariam dispostos a ir?
  • Será que a paciente teria uma preferência sobre como e onde preferisse morrer?

Um dos problemas com a geração de pessoas nascidas após a segunda guerra mundial é que elas possuem uma tendência a serem educadas, demonstrando gratidão e respeito aos profissionais de saúde.

Isso pode fazer com que as pessoas concordem com certas intervenções mesmo que não queiram, aceitando suas sugestões sem pensar no que seria melhor para o paciente.

Nesse caso específico, Marian decidiu que preferia não tomar o remédio e suas filhas entenderam que isto seria mais importante para ela.

Avaliando a capacidade de tomar decisões

As filhas sabiam que os problemas de memória da mãe reduziram sua habilidade de reter informações, mas não sabiam se o médico iria incluir as duas no processo de tomada de decisões.

Os fatores relacionados à capacidade de uma pessoa em tomar decisões válidas são bem definidos, expostos em cinco princípios-chave. Um deles é que a pessoa é capaz de tomar uma determinada decisão até que se prove o contrário.

Outro princípio importante é que a lei dá às pessoas o direito de tomar decisões que outras pessoas acreditam ser excêntricas, desde que não tenha sido provado que elas não possuem capacidade para tal.

Qualquer tipo de decisão é específica para um determinado contexto e tempo. Não existe presença ou ausência de capacidade de forma genérica.

Caso acredite-se que as preferências do paciente não são o melhor para ele, a família pode interferir judicialmente, ou o médico pode agir em casos de emergência.

O que foi feito no caso de Marian

As filhas escreveram para o médico e enviaram o estudo que usaram como referência, contanto o que haviam discutido com Marian.

Disseram também que se ele quisesse discutir um pouco mais sobre o caso, elas estariam à disposição dele para tal, principalmente com relação ao risco de um AVC ou infarto.

Elas contaram ainda que haviam cancelado o exame de sangue em jejum, mas se ele sentisse necessidade de um exame sem jejum, que elas fariam.

Pontos finais e mensagens para levar para casa

Podemos tirar dessa história dois pontos principais:

  1. Sempre se faça a seguinte pergunta: “O que estou tentando alcançar com isso?”
  2. Foque-se principalmente em tratar aquele paciente, não o paciente de forma geral.

Além disso, aprendemos que a tríade da Medicina Baseada em Evidências de valores e preferências, melhor evidência e julgamento clínico, é muito mais do que um diagrama bacana.

Importante ressaltar que procedimentos simples, como exames de sangue, podem não ser tão simples assim para um paciente específico e para a sua família ou cuidadores.

Além disso, os exames e os tratamentos oferecidos podem não necessariamente significar a melhor opção para aquele paciente.

O maior resumo dessa história pode ser que: só porque nós podemos, não significa que devemos.

Adaptado de: Evidently Cochrane.

Equipe Lupmed
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