Neste segundo artigo da série do ombro, vamos tratar da biomecânica inserida no tema das disfunções.
O primeiro artigo desta série foi sobre a anatomia do complexo do ombro.
Se você não leu o primeiro artigo, você ainda pode fazer isto clicando aqui e depois você pode retornar e ler este segundo artigo.
Tudo pronto? Vamos lá então!
O básico da avaliação
As lesões de ombro podem acometer qualquer indivíduo, independentemente da faixa etária.
Para os que possuem menos de 35 anos de idade, as lesões ocorrem por lesões esportivas ou laborais.
Já para as pessoas com idade superior a 35 anos, a lesão é muitas vezes consequência de micro lesões e degeneração articular.
Durante o exame físico é importante inspecionarmos o paciente, seguindo uma lógica já sistematizada, como esta:
Na vista anterior verificar:
- o alinhamento da cabeça
- a distância da orelha ao acrômio (para se ter uma noção do comprimento do trapézio superior)
- se há translação cervical (dá um indício de disfunção de escalenos)
- a distância do queixo ao manúbrio do esterno e clavículas (para uma avaliação subjetiva do comprimento do Esternocleidomastoideo)
- a altura dos ombros (a elevação do ombro prejudica a função do Trapézio Superior)
- se há encurtamento do Elevador da Escápula homolateral ao ombro, com queixas
- se há escoliose torácica
Na vista posterior deve-se observar as escápulas, lembrando dos pontos de referência (ângulo superior no nível de T3 e T4, e ângulo inferior em T7 e T8)
Na diagonal verificar, se há escápula alada e, por fim, na vista lateral avaliar subjetivamente se o peitoral menor está encurtado. Só essa última etapa da inspeção pode levar à hipótese de estiramento de romboides, síndrome do impacto, etc.
A palpação é parte da avaliação, e quando há presença de dor, ela torna-se extremamente relevante.
- Dor no processo coracoide, normalmente é indicativo de tendinite, síndrome do impacto.
- Dor na região anterior do ombro normalmente é associado a bursites.
- Dor generalizada no ombro como um todo, pode ser por lesão degenerativa da cápsula.
A partir daí pode-se seguir para a goniometria, avaliação de força, testes de flexibilidade muscular entre outros.
Na suspeita de alguma doença também é importante checar os testes ortopédicos mais utilizados como:
- Apreensão anterior – se positivo, relacionado a instabilidades e até de luxações
- Apreensão posterior – se positivo, relaciona-se a lesões na cápsula posterior do ombro
- Hawkins-Kennedy – se positivo, indica bursite subacromial ou paratendinite
- Teste de Neer – teste que quando positivo sugere lesão por overuse do supraespinhoso
- Gerber – teste voltado para a função do músculo Subescapular
- Jobe – teste relacionado à laceração do supraespinhoso
- Yergason – se positivo, pode indicar tendinite do Bíceps Braquial
Para registrar a questão da função e da sintomatologia, temos como opções os questionários: DASH (Disfunções do Braço, Ombro e Mão), TSO (Teste Simplificado do Ombro) e Escala Funcional da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) a qual é voltada ao contexto hospitalar)
O DASH e a Escala da UCLA são validados para o Brasil também.
Disfunções comuns do ombro e o entendimento biomecânico
Muitas lesões são acompanhadas de déficit na rotação interna do ombro e geralmente não há dor quando o paciente é jovem.
O que a biomecânica tem para contribuir para o entendimento de uma lesão como essa?
O primeiro ponto a se considerar é que a melhor avaliação no caso é a dinâmica.
Depois da avaliação básica descrita aqui inicialmente, devemos traçar avaliações mais personalizadas e funcionais, diretamente relacionadas às queixas do paciente e suas atividades da vida diária (AVDs).
Realizar somente uma avaliação estática é um grande equívoco.
É no movimento que veremos as ações dos músculos surgindo, a sincronia e o equilíbrio.
Gravar em vídeo e analisar o paciente realizando a abdução completa dos ombros bilateralmente é um dos primeiros passos para um bom exame físico.
Um dos primeiros elementos associados a esse déficit é o aumento do movimento de rotação externa, muito característico de algumas atividades esportivas, por exemplo, a natação.
Esse déficit abre espaço para a região anterior do ombro e limita o espaço na região posterior, por isso a diminuição de amplitude para rotação interna.
E o que mais essa diminuição na rotação interna pode causar?
- Hipermobilidade para rotação externa do ombro com alterações escapulares/discinesia escapular
Similar aos desvios de coluna, nosso corpo vai se adaptando.
Uma hipomobilidade para rotação interna acaba sendo compensado com uma rotação externa excessiva.
- Encurtamento da cápsula posterior da glenoumeral
O fato de o ombro não percorrer adequadamente a ADM para rotação interna, provocará encurtamento nessa região da cápsula, que alonga na rotação interna.
- Desequilíbrio muscular
No Serrátil Anterior acontece uma conversão do tipo de contração desse músculo que passa de concêntrica para excêntrica na rotação superior da escápula.
Ou seja, se o músculo desliga, a escápula “ala”, ou seja, se torna alada, e faz com que se perca totalmente a estabilidade.
(A discinesia da escápula ou escápula alada, é a alteração dos movimentos normais da escápula, originado por diferentes causas.)
Essa situação se agrava mais ainda caso o paciente tenha cifose, a qual naturalmente causa um certo bloqueio à escápula.
Caso o Peitoral Menor esteja encurtado (o que é muito comum), os Romboides Maior e Menor tentam compensar aumentando sua força, hiperativando.
Na ausência de uma boa estabilização, pode haver também a contração indevida dos músculos: Elevador da Escápula e Trapézio Superior na depressão escapular.
Nessa situação são conhecidos como “músculos parasitas”.
Além disso, se o Supraespinhoso se sobrecarregar também, haja vista toda essa alteração no funcionamento do manguito rotador, o Deltoide também irá se sobrecarregar.
Isso acontece devido a um fenômeno chamado Efeito Parafuso.
Lembra dos conceitos de Energia, Potência e de Trabalho, na Física?
A aproximação das inserções do Deltoide aumenta sua potência em condições normais, mas se a escápula estiver hipomóvel (como na cifose e disfunções do ombro em geral) quem compensa é justamente o Supraespinhoso.
- Impacto subacromial
Isso também pode acontecer caso o Trapézio Superior seja ativado além do que deveria, o que faz a escápula, na rotação superior, ultrapassar a ADM fisiológica, chocando-se no acrômio.
Essa hiperativação pode acontecer justamente pela disfunção do Serrátil Anterior e demais músculos estabilizadores.
Síndrome do Impacto (SI)
Comentamos sobre a SI, algumas vezes ao longo dos posts, mas não paramos para entender o que ela é.
A SI é uma entidade caracterizada por dor no estreito espaço subacromial, que se estreita mais ainda por causa do atrito entre os tendões dos músculos ali inseridos.
E esses tendões são justamente os do manguito rotador.
A etiologia é diversa, mas na maioria das vezes decorre de uma isquemia natural.
O que implica bastante no aparecimento da SI é a frequência de movimentos no ombro de máxima amplitude, que fazem os membros superiores ultrapassarem o nível da cabeça (no contexto laboral e/ou esportivo).
A doença é dividida em 4 estágios:
- Síndrome do Impacto: é um atrito, mas sem um rompimento de tendão. Causa: bursite e tendinite.
- Rotura parcial do manguito rotador: o atrito mais intenso acaba rompendo o tendão.
- Rotura completa do manguito rotador: o atrito aumentado causa a rotura total da estrutura.
- Artropatia do manguito rotador: muitos tendões são rompidos levando ao desgaste da articulação, artrose.
Lesão de Labrum
Mais conhecida como lesão SLAP, até para diferenciar da lesão de labrum do quadril, é o dano à região superior do lábio glenoidal envolvendo o tendão bicipital.
SLAP é um acrônimo para Lesão Superior da Anterior para a Posterior, já que usualmente ela ocorre sob um mecanismo de trauma de tração no braço em um arremesso, por exemplo.
Quando além da região superior, a região ântero-inferior é também atingida temos uma lesão de Bankart que é, com frequência, acompanhada de luxação ou deslocamento da articulação do ombro.
Também pode ser categorizada em 4 classes:
- Tipo I: ocorre apenas um “rasgo” no labrum, as bordas ficam ásperas
- Tipo II: na mais comum de todas, o labrum é arrancado da glenóide deixando uma lacuna entre a cartilagem e a fixação labral ao osso
- Tipo III: ocorre adicionalmente uma lesão em “alça de balde”
- Tipo IV: ocorre essa lesão “alça de balde” também no tendão do bíceps
A partir do tipo III, o labrum dilacerado trava na articulação e causa sintomas de estalo, de travamento, daí o nome “alça de balde”.
O tratamento é feito pelo cirurgião que remove essa “alça” e repara qualquer tecido “descolado” e instável remanescente. A técnica utilizada é a artroscopia.
Apesar de ser uma lesão necessariamente traumática, o tratamento conservador é efetivo em 70% dos casos.
Mas para isso é preciso haver um bom diagnóstico, já que essa lesão é muito semelhante a uma lesão convencional do manguito rotador. A ressonância magnética pode ser solicitada para melhorar a precisão desse diagnóstico.
Classificação de Kibler
Essa classificação é muito utilizada no dia a dia porque com ela temos mais noção em que ponto vamos atuar, com qual estratégia baseada em evidência vamos trabalhar e também poderemos acompanhar a evolução do caso.
Você classifica ao observar a abdução ativa do ombro até o máximo da ADM, na vista posterior. Essa classificação é muito simples, observe:
- Grau 1: proeminência do ângulo inferior da escápula
- Grau 2: proeminência do ângulo medial da escápula
- Grau 3: proeminência do bordo superior da escápula
- Grau 4: normal, sem proeminências
Lembrando que geralmente o grau 1 é relacionado à disfunção do Trapézio Inferior, um caso mais avançado portanto, enquanto o grau 2 à disfunção é do Serrátil Anterior.
Mais um aspecto básico da avaliação geral é saber se a causa da disfunção é óssea ou por tecido mole.
Realizar um MWM (Mobilization With Movement), como avaliação, pode ser bem interessante.
Isso porque, se você perceber um aumento e ADM ao aplicar a técnica é porque, certamente, a escápula também é uma das causas da disfunção.
Como atuar nas Disfunções do Ombro?
Quando existe um achado inespecífico, não obrigatoriamente acompanhado por uma patologia, como é o caso de um paciente com um déficit de rotação de ombro importante, é essencial procurar ativar os músculos corretos do paciente.
A ativação muscular envolve todo um estímulo cortical, inconsciente… alcançável pelo treino sensóriomotor. O objetivo é inibir os músculos hiperativados (como o Trapézio Superior) e “acordar” os músculos mais enfraquecidos, como o Serrátil Anterior e o Trapézio Inferior.
Esse treino sensóriomotor usualmente envolve:
- Exercícios de Double Task (estimular o músculo alvo e ao mesmo tempo solicitar que o paciente resolva uma conta aritmética simples, por exemplo, favorecendo mais a automação das contrações)
- Estímulos visuais (com o biofeedback e gameterapia, por exemplo)
- Mentalizações e demais exercícios que envolvem a pura imaginação do movimento
Caso opte por realizar a boa e velha cinesioterapia tradicional, é possível sim.
Mas é interessante focar nas peculiaridades.
Se o paciente tem o Deltoide hiperativado, ao realizar movimentos de rotação externa, um rolinho feito de toalha na região do cotovelo, ajuda a inibir.
Outro grande aliado da fisioterapia no manejo das disfunções biomecânicas do ombro é a série de exercícios Blackburn.
Trata-se de exercícios progressivos que devem ter a proporção de 10:1 de trabalho e repouso. Exemplo: 5 séries de 8 repetições com 10 s de intervalo entre as séries, isso entrega 400 s de contração e 40 s de repouso.
O paciente deverá estar em decúbito ventral, com os braços ao longo do corpo.
Eis a sequência:
- Abdução dos ombros com braços em posição neutra e estendidos
- Abdução dos ombros com rotação externa, cotovelos estendidos
- Abdução dos ombros com rotação externa, cotovelos fletidos
- Extensão máxima dos ombros
Este é apenas o primeiro artigo da série: Complexo do ombro
Nos acompanhe para não perder nenhum deles, porque traremos muito mais informações para te auxiliar a rever o tema.
Além da postura, como podemos avaliar e intervir nos outros elementos musculoesqueléticos, como os tendões, fáscias, ligamentos?
Como podemos associar a cinesioterapia com a eletroterapia?
Como traçar um programa preventivo seguido de reabilitação?
Além disso, é sempre bom buscar as diretrizes mais atuais e verificar se existe um upgrade nas condutas que são tão valorizadas hoje.
Será que a prescrição dos exercícios de Blackburn não mudou?
Apareceram mais testes ortopédicos que precisam ser conhecidos pelo fisioterapeuta?
É com essa enxurrada de dúvidas que finalizamos a série sobre o ombro, para instigar você, fisioterapeuta, a continuar buscando conteúdo que agregue mais na sua vida profissional!
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